Está tudo nos livros, mas tem de escolher: Wernicke, hipotiroidismo, ou ambos?

Resumo clínico

Apresentamos o caso clínico de um doente do sexo masculino, de 50 anos de idade, com o diagnóstico de carcinoma epitelial do cavum, diagnosticado há oito meses. Deixou de fumar há treze anos e era consumidor ocasional de álcool. Não tinha outras doenças prévias. Há sete meses, foi submetido a uma combinação de quimioterapia e radioterapia, tendo concluído com êxito o tratamento do tumor. Teve efeitos secundários, como uma perturbação significativa da deglutição e uma perda de peso de mais de 20 quilos, no entanto, não parecia subnutrido, porque normalmente pesava 100 kg. O campo de radioterapia atingiu a região centro-mediana do cérebro. Apresentou também toxicidade das mucosas, tendo apenas ingerido alimentos líquidos nos últimos três meses.

Evolução clínica

A família trouxe o doente ao Serviço de Urgência (SU) durante o fim de semana, por ter começado com confusão e desorientação e dificuldade em andar corretamente. O exame físico mostrou um doente confuso. Conseguia falar e movimentar os braços e as pernas, mas era incapaz de se manter de pé ou de caminhar sem ajuda. Foi detectado nistagmo horizontal bilateral. As análises ao sangue, a função renal e os níveis séricos de vários elementos, incluindo o cálcio, eram normais. A tomografia computorizada sem contraste foi considerada normal, sem evidência de metástases ou de hemorragia intracraniana significativa. O doente foi internado no hospital na sexta-feira.

O primeiro diagnóstico possível foi de toxicidade neurológica na sequência de uma radioterapia do cavum e do tronco cerebral.

Na segunda-feira, o médico responsável pelo doente encontrou-o confuso, desorientado, com o mesmo problema ao levantar-se e com um nistagmo bilateral e horizontal. Pediu uma ressonância magnética com contraste, apresentado abaixo

Na substância cinzenta periaquedutal, no hipotálamo, em ambos os tálamos mediais, nos corpos mamilares e na região à volta do terceiro ventrículo, é mostrado um realce de sinal simétrico nas sequências pT2 e FLAIR, que não aparecia anteriormente

Acompanhamento do doente

O doente iniciou tratamento com tiamina, esteróides e fluidos intravenosos, sendo alimentado por sonda nasogástrica. O diagnóstico principal, com base no quadro clínico e radiológico, foi de encefalopatia de Wernicke (EW), relacionada com a carência de nutrientes e vitaminas, devido à toxicidade da mucosa do trato digestivo superior pela radioterapia recebida. A doente só conseguia ingerir líquidos e alguns derivados do leite.

Uma segunda bateria de exames laboratoriais revelou um nível elevado de vitamina B12 e um nível normal de vitamina B1. Verificou-se um hipotiroidismo central, com TSH, T3 e T4 baixos, tendo sido administrada levotiroxina para corrigir este défice.

Alguns dias após o início do tratamento com tiamina e levotiroxina, a situação clínica do doente melhorou, mas sem normalização completa do estado mental.

Diagnóstico final

-Encefalopatia de Wernicke (EW), devida a uma nutrição inadequada associada a toxicidade das mucosas após radioterapia (confusão, ataxia, nistagmo).
-Hipotiroidismo central, em associação com a radioterapia (campo de penumbra de radioterapia no tronco cerebral).

Comentário

Este caso clínico mostra a complexidade de chegar a um diagnóstico em medicina clínica. A combinação do quadro clínico com a sugestão do radiologista é um teste muito decisivo para escolher um diagnóstico. No entanto, este caso é também um exemplo da necessidade de elaborar um diagnóstico diferencial completo na prática clínica. No fundo, o que vemos numa imagem pode ser caraterístico de uma doença, neste caso a encefalopatía de Wernicke (1), como descrevemos aqui, mas temos de estar atentos à possível presença de outro problema envolvido nos sintomas do doente, por exemplo o hipotiroidismo, que pode estar associado a um estado confusional. A medicina não é matemática e, por vezes, quando pensamos que temos a certeza de obter um determinado valor, como neste caso, níveis baixos de tiamina no sangue, ficamos surpreendidos ao verificar que são normais, como no nosso caso. Normalmente, esta situação pode ser explicada pelo facto de existirem várias vias metabólicas que vão na mesma direção, como uma cadeia, e o problema pode estar algures no meio. A EW é, antes de mais, um diagnóstico clínico, e o laboratório e a radiologia ajudam nesse diagnóstico.

Análise

A questão que se coloca é: se a encefalopatia de Wernicke é o “worst case scenario” quando há confusão, ataxia e nistagmo, no contexto adequado de um doente com mau estado nutricional, porque é que este diagnóstico não foi inicialmente considerado no Serviço de Urgência?

Apresentamos aqui uma análise de causa raiz, com alguns factores cognitivos e sistémicos, que acreditamos poderem ajudar a explicar esta situação, pelo menos parcialmente.

 

Bibliografía

1)G Zuccoli 1M GallucciJ CapelladesL RegnicoloB TumiatiT Cabada GiadásW BottariJ MandrioliM Bertolini    Wernicke encephalopathy: MR findings at clinical presentation in twenty-six alcoholic and nonalcoholic patients. AJNR Am J Neuroradiol2007 Aug;28(7):1328-31.

2) HK Rooprai, et al. Thiamine pyrophosphate effect and normalized erythrocyte transketolase activity ratio in Wernicke-Korsakoff patients and acute alcoholics undergoing detoxification.Alcohol Alcohol. 1996 Sep;31(5):493-501. doi: 10.1093/oxfordjournals.alcalc.a008184.

Autor: Dr. Lorenzo Alonso Carrión

FORO  OSLER 

 

 

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