Porque é que a insuficiência cardíaca direita pode ser confundida com sépsis? Um exercício de raciocínio clínico
Objetivo
Neste artigo pretendemos mostrar a importância dos conhecimentos de anatomia e fisiopatologia no raciocínio clínico, apresentando uma situação clínica real em que é necessário diferenciar entidades que podem partilhar semiologia e dados analíticos, mas que têm uma abordagem terapêutica diferente. Além disso, com o desenvolvimento de novos fármacos em Oncologia Médica, estamos a assistir a toxicidades até agora pouco comuns, que devem ser tidas em conta no diagnóstico diferencial de cada situação clínica.
Relato de caso
Doente do sexo masculino, 55 anos de idade, com o diagnóstico de carcinoma espinocelular do pulmão, localizado no lobo superior esquerdo, mediastino e com metástases cerebrais à partida. Iniciou tratamento com quimioterapia e imunoterapia, com boa tolerância clínica e resposta objetiva a nível pulmonar. Uma semana após ter recebido o terceiro ciclo de tratamento, apresentou um episódio agudo grave e foi ao pronto-socorro.
O doente recorreu ao hospital de urgência por aumento da falta de ar em repouso, com dor torácica central, e referiu ter-se sentido febril. Tinha vindo a reduzir progressivamente a dose de corticosteróides que tomava em casa, como adjuvante da manutenção do apetite e do estado geral.
No serviço de urgência, o doente encontrava-se consciente, orientado, com falta de ar e sensação de doença grave. Não tinha febre, mas apresentava oligúria e hipotensão ocasional, alternando com hipertensão arterial, com uma saturação de oxigénio de 97%, respirando oxigénio.
O hemograma era normal (Hb:12), com leucocitose moderada, tempo de protrombina de 61%, função renal comprometida com creatinina de 1,6, uremia 125, taxa de filtração glomerular de 37 mL/min. Os iões eram normais e havia um aumento muito significativo das transaminases, mais de cinco vezes o seu valor normal (GOT 1010, GPT 1585), com valores de bilirrubina total minimamente elevados (1,6). O valor da troponina era normal. PCR 95. Gasimetria venosa: pH: 7,3; HCO3: 15.
A doente mantinha tendência para oligúria.
Evolução clínica. Tomada de decisão
Primeira decisão diagnóstico-terapêutica
Como o doente tinha recebido tratamento oncológico com imunoterapia, para além da quimioterapia, foi considerada a toxicidade hepática e renal devida à imunoterapia, iniciando-se o tratamento com metilprednisolona em dose elevada.
Justificação
A toxicidade da imunoterapia pode afetar vários órgãos e é grave. Por conseguinte, a decisão de iniciar esteróides em doses elevadas é correta, uma vez que pode salvar o doente. No entanto, existem achados invulgares neste tipo de toxicidade, como a hipotensão e a oligúria.
A radiografia de tórax na admissão é mostrada abaixo:
![](https://prodiagnosis.org/wp-content/uploads/2024/12/gavi2-2.png)
Segunda decisão diagnóstica e terapêutica
Devido à apresentação aguda dos sintomas, com hipotensão e oligúria, e elevação da PCR, foi avaliada a possibilidade de um quadro sético, tendo sido iniciado tratamento com antibióticos de largo espetro. A elevação da bilirrubina e a alteração das transaminases podem estar presentes na sepse devido à hipoperfusão hepática. Foi também avaliada a possibilidade de hepatite viral, uma vez que o anti-core e o antigénio anti-HbS (HBsAg) eram positivos, mas a carga viral era negativa.
Justificação
Um episódio sético tem um início agudo e, para além de sinais inespecíficos como a inquietação, é frequentemente, mas não sempre, acompanhado de hipotensão e oligúria, sinais nefastos para a vida do doente. As anomalias hepáticas também podem estar presentes na septicemia. Embora a PCR elevada possa ser indicativa a este respeito, a PCR elevada num doente com uma neoplasia tem um valor relativo na previsão da infeção. Por outro lado, a resposta clínica é geralmente relativamente rápida após o início precoce de antibióticos, mas não foi o caso neste doente.
Evolução clínica
Vinte e quatro horas após a visita ao Serviço de Emergência, o doente começou a apresentar maior dificuldade respiratória, pior estado geral, mantendo-se oligúrico e hipotenso. A auscultação pulmonar mostrava crepitações húmidas em ambas as bases, enquanto os tons cardíacos eram pouco audíveis. No abdómen, o bordo hepático era palpável e algo doloroso. O paciente teve que ser transferido para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI) devido à instabilidade hemodinâmica.
Abaixo, a radiografia de tórax no momento da transferência para a UTI.
![](https://prodiagnosis.org/wp-content/uploads/2024/12/gavi-2.png)
Questão
Qual seria a relação entre baixo débito cardíaco, comprometimento da função hepática e insuficiência renal?
Orientações para o diagnóstico da situação
Temos dois aliados para tentar encontrar uma resposta para o problema do paciente, a Anatomia e a Fisiopatologia. Em termos de fisiopatologia, o primeiro problema parece ser uma “falha” da bomba cardíaca, resultando em hipotensão e oligúria por falta de fluxo sanguíneo para o rim, uma vez excluída a hipótese de o doente não estar anémico, por exemplo. Quanto às alterações analíticas do fígado, também poderiam estar relacionadas com a falta de perfusão, mas este mecanismo não explica a hepatomegalia dolorosa detectada no exame físico.
Se pensarmos de um ponto de vista anatómico, a questão seria saber se existe alguma relação entre a função cardíaca e o fígado, o que explicaria as alterações analíticas e morfológicas hepáticas.
Apresenta-se de seguida uma imagem anatómica esquemática que pode ajudar a explicar os achados deste doente e a chegar a um diagnóstico.
Solução. Diagnóstico final
O doente foi submetido a ecocardiograma que mostrou um coração com contratilidade ventricular esquerda normal, sem valvulopatias, mas com derrame pericárdico circunferencial grave, com colapso sistólico da aurícula direita, colapso sistólico do ventrículo direito e veia cava inferior dilatada sem colapso inspiratório. Esta situação foi responsável por hipotensão arterial, oligúria por baixo débito, hepatomegalia e alterações analíticas hepáticas por congestão retrógrada da aurícula direita para a veia cava inferior e fígado.
Foi efectuada pericardiocentese, tendo o doente evoluído favoravelmente.
Comentário
Para além do conhecimento das diferentes entidades clínicas, o processo de Raciocínio Clínico tem uma forte base em Anatomia e Fisiopatologia, como demonstrámos nesta situação clínica, em que uma estrutura anatómica como a veia cava inferior pode ajudar a explicar os dados do paciente.
Autor: Lorenzo Alonso Carrión
FORO OSLER