Febre Mediterrânica Familiar (FMF): um diagnóstico não tão familiar, não tão mediterrânico, mas com febre

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Objectivos

A Febre Mediterrânica Familiar (FMF) é uma doença incluída no grupo das doenças auto-inflamatórias, com uma constelação específica de sinais e sintomas. Embora o quadro genético e clínico seja bem conhecido, as pessoas afectadas por este processo sofrem, muitas vezes, um atraso no diagnóstico, não só de dias ou meses, mas de vários anos. Discutiremos aqui as possíveis causas associadas a este atraso no diagnóstico, descrevendo dois casos clínicos.

Antecedentes

A FMF foi inicialmente descrita em indivíduos de ascendência mediterrânica oriental (1), mas é atualmente considerada uma entidade clínica mundial. A designação “familiar” pretende enfatizar a origem genética da doença, diferenciando-a de outras síndromes com febre associada a uma infeção ou condição imunológica. A hereditariedade segue um padrão autossómico recessivo, com uma mutação no gene MEFV (2), mas o quadro genético completo não é totalmente conhecido, porque alguns doentes são heterozigóticos para a mutação e várias outras mutações estão também associadas à doença (3).
Os critérios de diagnóstico estão bem estabelecidos na literatura médica (critérios de Tell-Hashomer, critérios de Livneh, Printo(4). A febre e a serosite estão quase universalmente presentes e estes sintomas podem muitas vezes ser confundidos com uma infeção viral, levando a um atraso no diagnóstico. Estudos em populações de origem mediterrânica oriental mostraram algumas variáveis associadas ao atraso no diagnóstico (5).

Apresentamos aqui dois casos clínicos, um com diagnóstico clínico e outro com confirmação genética,
com a intenção de descrever um padrão clínico e explorar possíveis vieses diagnósticos envolvidos no atraso diagnóstico.

Caso 1

Homem de 22 anos que iniciou, durante a pandemia de Covid, um quadro agudo de febre, calafrios, dispneia e dor torácica central. O exame físico revelou falta de ar no pulmão basal direito e sensibilidade no quadrante superior direito. As culturas de sangue e de urina, bem como as análises laboratoriais exaustivas para deteção de bactérias e vírus, foram negativas. A radiologia e a ecografia cardíaca revelaram um derrame pleural esquerdo ligeiro e líquido pericárdico. Não foram detectadas células cancerígenas na análise do derrame pleural. Verificou-se um aumento significativo do nível de reactores de fase aguda, como a ferritina, mais de cinco vezes superior ao valor normal. O doente iniciou tratamento empírico com um anti-inflamatório não esteroide, oxigénio, uma dose baixa de esteróides e paracetamol, tendo-se verificado uma clara melhoria global do seu estado clínico ao quarto dia.

O doente referiu três episódios semelhantes no ano anterior, geralmente em momentos de stress. Decidiu não efetuar o teste genético.

A Figura 1. mostra as alterações drásticas no tamanho da silhueta cardíaca num período de duas semanas.

Caso 2

Uma mulher de 19 anos iniciou um quadro de dor torácica anterior aguda, sem febre, com radiologia pulmonar normal. Foi tratada com analgésicos e a dor desapareceu ao quarto dia. Tinha antecedentes de tiroidite autoimune e faringotonsilite recorrente. Um ano e meio depois, recomeçou com dor torácica central aguda, febre muito alta (39ºC), mialgias e artralgias, com alterações do intervalo ST no eletrocardiograma, tendo-lhe sido diagnosticada miopericardite. O doente teve mais quatro episódios de febre e dor torácica num período de quatro anos. O teste genético confirmou o diagnóstico de FMF.

Análise

A FMF é uma doença propensa a atrasos diagnósticos por várias razões. Um aspeto importante é a presença de febre como caraterística chave, um sintoma partilhado com muitas outras doenças, infecciosas ou inflamatórias. Além disso, a FMF é uma doença com baixa prevalência, e a consideração como uma entidade “mediterrânica” pode ser um importante indutor de preconceitos, uma vez que sabemos agora que não existem fronteiras geográficas para esta doença. A consideração como doença “familiar” pode também ser um fator associado a erros de avaliação clínica, uma vez que os padrões de hereditariedade não estão totalmente esclarecidos, não sendo possível prever qual o membro da família que apresentará o quadro clínico completo.

Conclusões

A FMF deve ser considerada como um possível diagnóstico quando uma pessoa, normalmente a partir de uma idade jovem, sofre de febre episódica sem deteção de um agente infecioso, especialmente quando está presente pericardite ou ascite ligeira, dor abdominal e artralgias acompanhadas por uma deterioração geral significativa. Um resumo completo das visitas médicas anteriores ao pediatra, ao médico de clínica geral ou ao serviço de urgência, juntamente com uma história familiar completa, pode ajudar a chegar a um diagnóstico sem mais demoras.

Bibliografía

1 Ozen F. Familial Mediterranean Fever. Rheumatol Int 2006; 26: 489-496
2 French FMF Consortium. A candidate gene for familial Mediterranean fever. Nat Genet 1997; 17-25

3 Lancieri, M; et al. An Update on Familial Mediterranean Fever. Int J Mol Sci 2023; 24,9584
4 Gattorno M, Hofer M, Federici S, et al. Eurofever Registry and the Paediatric Rheumatology
International Trials Organisation (PRINTO) Classification criteria for autoinflammatory recurrent fevers.Ann Rheum Dis 2019; 78: 1025-1032

5 Erdogan M; et al. Familial Mediterranean Fever: misdiagnosis and diagnostic delay in Turkey. Clin Exp Rheumathol. 2019 Nov-Dec; 37 Suppl 121(6): 119-124

Autor: Dr. Lorenzo Alonso Carrión

FORO  OSLER

 

 

 

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